Contos

Leitura Rápida

     Para Aurelino, as borboletas azuis sempre representaram indícios de boa sorte e felicidade. Por isso, quando avistou as borboletas azuis na janela do quarto, logo achou que haveria de encontrar a felicidade plena. Bastaria ter um pouco de paciência. Talvez esperar alguns dias, ou no máximo três meses, e a solidão deixaria de existir. Pôs na “mesinha de cabeceira” um calendário colorido e vistoso. Renovou o entusiasmo de viver. Passou a acreditar novamente no ditado que diz “nunca é tarde para ser feliz”. O tempo passava e Aurelino permanecia com a esperança inabalável. O sorriso dele passou a ser a sua marca registrada. Todo mundo percebeu que havia algo diferente no seu olhar. A tristeza havia desaparecido. Ele transmitia muita alegria e otimismo. Estava em paz consigo mesmo e com o mundo ao seu redor. Ele encontrava beleza nas coisas mais simples. E passou a sonhar como nunca havia sonhado antes. Até mesmo teve vontade de escrever poesia. Limpou o jardim que estava descuidado. Plantou boas sementes. Retirou as ervas daninha. Renovou o guarda-roupa. Comprou uma rede nova e pintou a varanda, local de refúgio para os seus devaneios. Ele mudou de modo substancial. Passou a trabalhar com mais dedicação e acreditar no amanhã. Procurou ajudar os semelhantes com mais entusiasmo. Deixou o isolamento. Saiu da “toca” e abriu o coração. Não queria permanecer à margem da vida... Voltou a ser um participante ativo na sociedade e inserido na luta pelo bem comum.

     Muita coisa mudou depois que as borboletas azuis voltaram... Aurelino deixou de ser um homem amargurado e de mal com a vida. Dava gosto de ver aquele homem com aspecto renovado, parecia até que havia renascido. No fundo do coração, havia uma fé cega de que a mulher ideal logo surgiria. As borboletas azuis eram as mensageiras de sorte no amor, o sinal de que a felicidade plena não tardaria a chegar. Por conta disso, Aurelino não economizava entusiasmo e estava sempre bem-humorado e recebia a todos com cortesia e atenção. Enfrentava “engarrafamento” sem reclamar. Cumprimentava a todos sem distinção desde o mais simples servente ao diretor executivo da empresa. Não negava esmola a ninguém. Perdoava a quem lhe ofendia. Dava bons conselhos. Confortava os aflitos. Procurava ser amigo de todo mundo. E sempre que podia, ressaltava que a vida é bela...

     E assim Aurelino foi vivendo, completamente revigorado depois daquele “bendito” surgimento das borboletas azuis na janela do quarto, onde antes só existia tristeza, desencanto, lamentos, lágrimas amargas e solidão. As borboletas azuis causaram uma profunda transformação no Aurelino, que estava solitário e desiludido de tantos desenganos. Na verdade, quase desistindo da vida... Foi quando, então, voltou a sorrir e sonhar, contemplar o arco-íris e olhar as estrelas, e o que é fundamental: voltou a cultivar a esperança... Sim, porque a esperança nos impele a seguir adiante, a acreditar no amanhã, e reforça nossa fé e crença de que tudo irá mudar para melhor. Para o Aurelino, as borboletas azuis tinham o encantamento próprio de um talismã e, por isso, ele achou que estava diante de um bom sinal, capaz de mudar radicalmente a sua vida. E se apegou a isso com todas as forças. E deixou de lado a amargura e o desânimo. Melhorou a convivência com os demais. Reformulou suas atitudes. Deixou de lado o “baixo-astral”. Conquistou simpatia e ganhou respeito e admiração de todos. De fato, Aurelino transformou-se num novo homem, digno e merecedor da tão desejada felicidade.

      Decorridos 90 dias desde o bendito aparecimento das borboletas azuis na janela do quarto de Aurelino, este continuava só e sem a sua sonhada musa. Mas, diga-se de passagem, sem perder a esperança e acreditando com convicção naquele sinal de boa sorte no amor. Quando chegou o entardecer, Aurelino, que adorava o mar, resolveu ir à praia e apreciar o luar sobre as ondas. Acomodou-se nas rochas para ter uma visão privilegiada. As águas estavam mansas e o céu repleto de estrelas. O cenário era de rara beleza. Ele, que havia previsto que a felicidade desta vez chegaria de qualquer maneira, não poderia esmorecer e decidiu permanecer ali e aguardar. Não lhe restava alternativa. Agora era tudo ou nada. O prazo estava quase no fim, mas e daí? Ele ainda acreditava no bom presságio das borboletas azuis. De repente, ouviu uma voz suave:

       – Podemos conversar?

     Aurelino olhou para trás e viu uma mulher de rara beleza e sensualidade a toda prova. Na verdade, nunca tinha visto nada igual. Ela tinha os cabelos longos enfeitado com fios de prata, o olhar era de gueixa e o rosto de princesa. O sorriso era de criança e o corpo de sereia sem escamas. Emocionado, Aurelino indagou meio sem jeito:

      – De onde você veio?

      – Estava vagando por aí e notei que você estava solitário. Na verdade, uma força estranha me trouxe até aqui...

      – Será você a musa dos meus sonhos?

      – Quem sabe... Gostaria muito de fazê-lo feliz.

      – Mas, porque você demorou tanto?

      – Ah! Muita coisa acontece de modo inexplicável.

      – Como posso acreditar em você?

      – Confie em mim. Feche os olhos e deixe-me beijá-lo.

     Aurelino não pensou duas vezes. E deixou-se levar por aquela mulher irresistível...

    Ao ser beijado sentiu-se nas nuvens. Desligado da terra e em outra dimensão. De fato, ao abrir os olhos constatou que foi “transportado” para um local estranho e repleto de flores e perfume inebriante.

     – Que lugar é esse? Será o paraíso?

     – Você está no planeta azul. Aqui a paz e fraternidade reinam de forma absoluta.

     – Não existe violência? E drogas?

    – Não. Nenhum tipo de mazela social.

    Aurelino, então, mais que depressa mandou fazer uma linda tatuagem de borboleta azul no peito e resolveu ficar definitivamente por lá...

Aurelino e a volta das borboletas azuis

*Gladston Salles

Este miniconto de ficção serve de alerta. Vamos dar as mãos e lutar por um mundo melhor, onde predomine o espírito de fraternidade universal e o respeito à natureza. Ainda dá tempo...

Algumas décadas após a 27 ª Reunião Anual dos Países da Convenção / Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima realizada em Novembro / 2022...

Na terra reina o caos. A água é escassa e qualquer alimento “vale ouro”. Muitos povos migraram e sucumbiram na luta pela sobrevivência. As geleiras derreteram e os oceanos engoliram nações inteira. O egoísmo, o desamor e a ambição desmedida dos homens focados apenas na conquista de bens materiais contribuíram muito para essa horrenda situação. As grandes potências mundiais (maiores responsáveis pela poluição) não deram a devida importância aos apelos dos ecologistas e dos movimentos populares pela preservação da natureza. Os cientistas, com base nos estudos e pesquisas avançadas, bem que tentaram convencer os governantes sobre os danos irreversíveis que a poluição desenfreada causaria à Terra. Mas de nada adiantou... Mesmo diante de estranhas mudanças climáticas e a ocorrência de catástrofes provocadas por tufão, ciclone, furacão, maremoto, temporais avassaladores, inundação, terremoto etc., os chamados “países ricos” continuaram com seus projetos ambiciosos de desenvolvimento econômico, expansão industrial, aumento do poderio bélico e do arsenal nuclear e conquista espacial. Lamentavelmente, sem consciência ecológica e sem tomar as medidas preventivas eficazes contra o chamado “aquecimento global”.

Nesse contexto, Globalino vive sem esperança diante de um cenário demasiadamente triste. O mundo está em ruínas. Quase não existe “verde”. O calor é sufocante. Globalino sente muita fome e sede. É o “aquecimento global” implacável e irreversível que atingiu o nível humanamente insuportável. Os rios secaram. A vegetação é coisa rara. Os homens e animais estão morrendo. Não há comida. O campo está sem cultivo. Aliás, está quase tudo deserto. Cidades “fantasmas”. Árvores ressequidas. Nenhum pássaro vadio. Ruas e avenidas vazias. Casas sem ninguém. Indústrias falidas. Comércio extinto. Nenhum meio de transporte em atividade. Tudo virou sucata. Lixo em abundância. Podridão. Medo. Desespero e lágrimas. Sinais de luto e abandono. Globalino perdeu a família e está muito doente. Solitário e sem destino, resolve, com dificuldade, caminhar até a velha estação de trem... Lá chegando, não encontra ninguém para ajudá-lo. O vazio é imenso. A solidão cruel. Não existe mais passageiro. Nem maquinista. O trem parou para sempre... Globalino sabe que não tem para onde fugir. A visão fica turva e quase não consegue mais respirar. Sente uma dor aguda no peito e, sem socorro, sentado no banco, agoniza e morre.

Que ironia do destino! Defronte à estação há um cartaz antigo e desgastado onde se lê: “Vamos salvar o planeta”.

Globalino e o aquecimento global

*Gladston Salles

Pogirum e Poton – Bendito aperto de mãos!

Apresentação

Ficção e não ficção, entrelaçadas nas linhas desse texto inspirado nos dados históricos (muitas vezes conflitantes) da odisseia de colonização no nordeste de Minas Gerais no Século XIX. Nas entrelinhas, a marca de ousadia do modesto escritor que se debruça sobre a história da Cidade de Teófilo Otoni e Região do Mucuri e procura “garimpar” palavras preciosas. Mas, como o ato de escrever é um ato de aventura passível de críticas, muitas vezes implacáveis, o autor conta com a generosidade dos leitores mais exigentes.

Introdução

Pesquisas históricas indicam que as primeiras expedições na região do Mucuri são datadas de 1550, 1573, 1580 e 1752. Ganha destaque a ordem de D.João III para que os colonizadores portugueses fizessem incursões no local com o objetivo de encontrar a “Serra das Esmeraldas”, cuja existência era garantida pelos nativos. Mas, o fato é que não lograram êxito. Antes do século XIX, as expedições de maior vulto, comandadas por Espinosa Tourinhos, Adorno, Martim Carvalho e Coronel Bento Lourenço não conseguiram ultrapassar o reduto dos ferozes índios botocudos. Muitos ficaram feridos ou foram mortos. Mas, esse quadro mudou radicalmente quando um estadista e visionário tomou para si as rédeas da colonização da região do Mucuri com espírito progressista. Quem é esse personagem? Vocês saberão a seguir...

Região do Mucuri, Minas Gerais, setembro de 1847...

O sol, embora tímido, surgiu no horizonte, afastando lentamente as nuvens cinzentas que pairava sobre o Vale do Mucuri. No ambiente hostil da mata verdejante um filhote de onça pintada abocanha a “teta” da mãe para fazer a primeira refeição matinal. Quando o dia amanhece na terra inóspita a vida selvagem mostra o seu vigor. A cobra coral de colorido vivo se mantém escondida entre as folhagens. As plantas venenosas em abundância mostram seu viço. Vários animais despertam, entre eles macacos, capivara, papagaios, cachorro-do-mato, araras, jaguatirica, urubu-rei, lobo-guará, gaviões e bicho preguiça. Nas árvores gigantescas da mata densa, inúmeros pássaros com cantos estridentes apresentam um espetáculo sonoro inigualável. A diversidade da flora e fauna é algo marcante. Em muitos pontos a floresta tropical é impenetrável. Cipós, brejos e pântanos. Muitas feras no caminho. O ambiente é úmido, quente, escuro, insalubre, e a vegetação rasteira é agressiva, espinhosa e cortante. Mas, em outros trechos há riqueza de recursos naturais como madeiras de ótima qualidade, plantas comestíveis e medicinais, assim como árvores frutíferas, rio, e animais em abundância para saciar a fome. Na vastidão do vale despontam elevações rochosas e montanhas. Além, claro, da ‘Serra das Esmeraldas” tão cobiçada pelos colonizadores e aventureiros de toda espécie. Nessa manhã de sol benfazejo um grupo de Kurucas corre alegremente próximo às margens do Rio Doce. Atento, o guerreiro “Grijó” da tribo naknenuk observa tudo com o olhar vigilante. Existe o receio de um ataque traiçoeiro de tribo inimiga. O sequestro de Kurucas é comum entre os índios rivais. Indiferente aos riscos, a bela índia “Dinda”, virgem mais cobiçada da aldeia, aproveita o momento de aparente calma para tomar banho no rio.

- Vamos embora, “Dinda” ! Grita o guerreiro “Grijó”.

“Dinda” – Só mais um pouco. Por favor, grande guerreiro!

“Grijó” - Já chega. Tenho muito o que fazer. Hoje é dia de caça.

Contrariada, “Dinda” sai do rio e caminha de volta para a aldeia, seguida de perto por ‘Grijó” que segura firme o tacape. Ao chegar na aldeia, uma surpresa: O cacique mandou chamar os guerreiros para uma reunião urgente... Não demorou muito, e todos se apresentaram com o devido respeito.

Cacique “Yakecan” – Recebi um aviso de nossos ancestrais mais sábios. Eles vieram à mim através do sonho para alertar sobre a vinda de invasores brancos, agora liderados por um “capitão” mais inteligente e destemido. Sinto que eles estão por perto. Estejam prontos! Preparem as armas, guerreiros! Fiquem de tocaia.

De fato, o cacique está certo. Um novo contingente de homens brancos a bordo do vapor Princesa Imperial parte do Rio de Janeiro rumo à Minas Gerais. Liderados pelo estadista, negociante e desbravador Teófilo Benedito Ottoni, o grupo tem a missão de invadir a floresta tropical do Mucuri e realizar a colonização da imensa região. Conscientes da árdua tarefa, e apesar do fracasso de inúmeras tentativas de exploradores que lhes antecederam, ninguém desiste ou demonstra esmorecimento. Isso porque dessa vez, quem está no comando é um político famoso por suas ideias liberais, ousadia, inteligência e coragem. Ottoni tem o respeito e admiração de seus comandados, e leva consigo um documento de inestimável valor: A concessão da Companhia de Comercio e Navegação do Mucuri concedida pelo Governo Imperial que garante exclusividade para exploração da navegação no rio Mucuri e do vale do mesmo nome.

Honório – Bom dia, meu irmão. Eis uma cópia do relatório de viagem ao rio Mucuri realizada em 1836 pelo engenheiro francês Pedro Victor Renant, cujo estudo concluiu boa navegabilidade. Acredito ser de grande valia.

Teófilo – Obrigado, irmão. Você é meu sócio principal nessa empreitada. Fico feliz em tê-lo ao meu lado. Juntos seremos mais fortes diante das adversidades. Acho que os ensinamentos que recebemos na Academia da Marinha no Rio de Janeiro vai ser muito útil.

Honório – Creio que sim. Conte comigo no que precisar.

Teófilo – Lembro-me com saudade do nosso tio José Elói, que nos acolheu quando éramos rapazes em sua casa no Rio de Janeiro. Ele defendia o incentivo ao comercio e indústria na colônia mineira. Chegou a dedicar o manuscrito `a Maria I, Soberana de Portugal.

Honório – O tio nos ajudou muito, e teve grande influência na nossa formação.

Teófilo – Estou muito confiante e acredito no êxito do nosso “Projeto Mucuri”, apesar dos inúmeros desafios que teremos ao” pisar em terra firme”. A floresta está repleta de indígenas violentos, principalmente os botocudos considerados antropófagos. Haverá perda de vidas humanas nos confrontos armados com os índios, e vítimas de doenças tropicais como a malária. Mas, não desistirei do meu ideal de fundar uma cidade e promover o progresso na região. Para tanto, assim que puder vou contratar lavradores europeus. Sou contra o trabalho escravo. E, creio que o desenvolvimento da agricultura será fundamental.

Honório – Mas, e o ouro e as pedras preciosas?

Teófilo – Não será minha prioridade.

Honório – Entendi. O seu objetivo maior é o desenvolvimento da região através da agricultura e atividade comercial da Companhia de Comercio e Navegação do Mucuri.

Teófilo – Perfeitamente. Pretendo fazer uma comunicação de Minas com o mar, de modo que toda a produção possa ser escoada com encurtamento de distância. Daí, a importância da navegabilidade do rio.

O referido projeto ambicioso teve o apoio de comerciantes da Corte, bem como da elite das comarcas mineiras que buscavam auferir lucros financeiros. Após o desembarque, todos iniciam os preparativos para a incursão no vale do Mucuri. É conferida a provisão e armamento. A rota é traçada. A ansiedade toma conta dos pioneiros. A atenção é redobrada. Vencido o processo de adaptação, Ottoni faz uma revisão dos estudos sobre a região e a estratégia a ser adotada. Ele está convencido de que a violência dos índios botocudos é resultado das atrocidades cometidas contra os selvagens por ordem de D.João VI, quando em1808 criou divisões militares com a finalidade de praticar um verdadeiro genocídio.

Ottoni – Atenção, pioneiros! Já superamos muitos obstáculos até o presente momento. Devemos seguir em frente com muita persistência e ousadia. Conto com vocês, homens de minha confiança... Sejamos fortes!

O inexorável tempo passa, e o calendário indica que já estamos no ano de 1849. Até agora, apenas alguns encontros esporádicos com os índios, assim mesmo à distância. De repente, a notícia do falecimento do irmão Honório deixa Ottoni extremamente abatido. Com a perda do sócio mais querido de todos, o “Capitão” procura se recuperar do luto, e resolve tocar o projeto sozinho. Pouco depois é avisado da chegada do presidente de província Quintiliano José da Silva e do fazendeiro Luiz Ferreira da Gama que habitava a parte mais remota do vale e mantinha amizade com a tribo jiporoca.

Ottoni – Meus cumprimentos, Senhor Quintiliano. Obrigado por ter vindo ao meu encontro.

Quintiliano – Estou a sua disposição. Queremos ajudá-lo nessa missão.

Ottoni – Como vai, senhor Luiz. Tudo bem?

Luiz – Tenho boas sugestões para facilitar o contato com os índios botocudos.

Otttoni – Ótimo, vamos conversar.

A conversa foi muito produtiva. Ottoni chegou a conclusão de que a melhor estratégia seria fazer dos botocudos seus aliados. Mas, como agir? Haveria de encontrar um meio apropriado... Pensando nisso, logo contratou alguns “linguas”.

No dia seguinte um grupo de pioneiros foi atacado pelos índios da tribo naknenuk que estavam de tocaia. Houve vítimas fatais e alguns feridos. Ao receber a notícia, Ottoni, preocupado, logo procurou uma aproximação com os índios. Um “lingua” recém - chegado facilitou o contato deixando um aviso para o cacique “Yakecan” de que o “capitão” tinha deixado vários presentes para a tribo num determinado local. E , assim que os índios avistaram as miçangas, espelhos, víveres e ferramentas, pendurado nas árvores, ficaram muito contentes e submissos. Tendo o cacique em retribuição oferecido ao “capitão” a índia “Dinda” e um kuruca para o servir como escravo; mas, a oferta foi recusada de pronto. Após conquistar a simpatia da tribo, Ottoni deu prosseguimento aos trabalhos de incursão na floresta tropical com ordens para ninguém disparar nenhum tiro contra os indígenas. Ele acreditava ser possível concretizar sua missão de modo pacífico. Pretendia construir estradas carroçáveis, vias fluviais, portos, armazéns e atrair a imigração estrangeira. Suas ideias liberais se assemelhavam às dos ingleses e franceses. E esperava conseguir o apoio das forças militares para afastar os traficantes de crianças indígenas, aventureiros e malfeitores que vagavam na província à procura de ouro e pedras preciosas.

Ottoni – Atenção, pioneiros! Amanhã cedo vamos penetrar na mata virgem. Que nunca nos falte a fé, coragem e sabedoria.

José Bento – Estamos prontos, senhor. As carabinas estão em boas condições. Os facões de mato afiados, bruacas cheias, alimentos e remédios em quantidade suficiente. Temos fumo de rolo, farinha, rapadura, toucinho de primeira, ferramentas e barris de pólvora. As mulas são muito resistentes. Vestimentas e botas apropriadas. Além de outras coisas...

No dia seguinte, ao amanhecer, conforme combinado, o contingente de pioneiros sob a liderança de Ottoni adentrou na floresta e enfrentou inúmeras dificuldades. Depois de afugentar, com tiros para o alto, um grupo de índios da tribo jiporoca, e fazer uma longa e penosa caminhada, avistaram uma bela planície com clima ameno e terra fértil.

Ottoni – Aqui farei a minha Filadélfia! Que será o primeiro povoado e centro da colônia de Mucuri. O nome é uma homenagem que presto aos ideais americanos de república e liberdade.

Em seguida, todos receberam autorização para descansar e montar acampamento.

Ottoni – Vamos aguardar a chegada dos colonos europeus que serão trazidos por outra expedição.

Altamiro – Quantos lavradores, senhor?

Ottoni – Muitos. Entre os quais, portugueses, franceses, italianos, holandeses , chineses, espanhóis, e sírios . Os alemães serão maioria. Aliás, o engenheiro alemão Robert Schlobach fará o planejamento da povoação.

Altamiro – Os colonos receberão proteção para trabalhar em paz?

Ottoni – Claro. Segundo informações do mensageiro, uma tropa de soldados está a caminho. E, cada colono ganhará um lote de terra, bem como outros benefícios garantidos pela Companhia de Comercio e Navegação do Mucuri.

Após a chegada dos colonos europeus e da tropa de soldados; Ottoni realiza oficialmente a fundação de Filadélfia no dia 7 de setembro de 1853, data comemorativa da independência do Brasil. E, uma vez concluído os trabalhos iniciais da referida fundação, resolve dar prosseguimento à missão de desbravar a floresta. Ao adentrar novamente na mata virgem percebe que o medo e a insegurança toma conta de todos. O que está acontecendo? Logo recebe informação do “lingua” de que agora os pioneiros teriam de enfrentar os botocudos, índios mais violentos do país e tidos como canibais; cujo cacique Poton, segundo a lenda, era considerado invencível. Ottoni, então faz uma reunião com seus subordinados e incentiva a todos. As trilhas são abertas e um longo trecho é percorrido. Muitos estão exaustos e famintos. O trabalho é duro. Os alimentos estão escassos. O jeito é comer frutas silvestres e palmito. Alguns doentes, vítimas de malária recebem o tratamento paliativo e são consolados. Então, Ottoni resolve usar luvas para se proteger das picadas dos mosquitos. De repente, uma flecha quase o atinge.

“Lingua” – Índios! Índios! Estamos cercados!

Santana – Protejam o senhor Ottoni. Preparem as carabinas para atirar.

Ottoni – Atenção! Ninguém atira, até segunda ordem. Vou tentar resolver essa questão do meu jeito.

Em seguida, pede ao “lingua” para dizer ao cacique Poton que Ottoni quer conversar. E, corajosamente se põe a frente de todos e caminha desarmado em direção aos botocudos. Logo é avistado de luvas brancas e causa grande impacto.

Poton – Pogirum! Pogirum! Pogirum!

Ottoni percebe a atitude amistosa de Poton, quando este ordena que os índios deixem as armas de lado. Em seguida se aproxima do cacique, e com artimanha, auxiliado pelo “lingua”, usa os recursos da semântica e fala que “Ottoni e Potone” são parentes.

Poton – Será verdade?

Ottoni – Claro. Vamos selar a paz. Trago presentes, e peço permissão para ocupar um montante de terras.

Poton – Que bom saber disso. Traga mais parentes que temos terras suficiente para todos.

Com grande surpresa os pioneiros assistem o aperto de mãos entre Pogirum e Poton, e ficam aliviados, certos de que dali em diante a missão será cumprida com mais facilidade. Os presentes são distribuídos para os botocudos e todos se confraternizam. Ottoni, eufórico com o feito segue adiante rumo à foz do Mucuri, onde embarca no vapor Santa Clara, navegando até próximo a uma linda cachoeira.

Ao desembarcar, acena com o inseparável lenço branco, e, é aplaudido por muitos admiradores. Após um breve descanso, acompanhado por uma comitiva, segue a cavalo na estrada carroçável com destino ao sul da Bahia. Agora, Minas tinha a comunicação com o mar.

*Gladston Salles

*Advogado, poeta, e escritor, natural do RJ. Acadêmico Correspondente da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG. Membro Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Mucuri/MG.

Notas:

kuruca – criança indígena.

lingua – intérprete, guia tradutor da língua indígena.

Pogirum – Capitão de mãos brancas ( assim Teófilo Otoni era chamado pelos índios ).

Fontes de Consulta:

Colonização, Política e Negócios: Teófilo Benedito Ottoni e a trajetória da Companhia do Mucuri ( 1847/1863) – Dissertação de Mestrado – Weder Ferreira da Silva – Pós -Graduação em História – UFOP – junho/2009

Notícia sobre os selvagens do Mucuri – Organização de Regina Horta Duarte – BH

Editora UFMG/2002

Companhia de Comercio e Navegação do Mucuri – Concessão de serviço público como forma de desenvolvimento de uma região – Flávio Henrique Salomão Neto

Diário de Teófilo Otoni datado de 08/09/2016 – Teófilo Otoni comemora 163 anos.

Wikipédia, a enciclopédia livre – Teófilo Otoni

www.teofilootoni.mg.gov.br/sobre/historia

A "Bruxinha" e o "João de Barro"

Ainda era bem cedinho quando a “Bruxinha” caminhava no parque rodeado de muito verde e pássaros sem conta. Parecia até um sonho. Uma ficção em meio a tanta poluição que assola a cidade de São Paulo. E como sempre fazia elevou o pensamento à Deus e agradeceu por essa dádiva. Sim, porque se agigantando cada vez mais , bem próximo, estava o maior centro financeiro do país com suas mazelas sociais e prédios arquitetônicos querendo “espetar” o céu. Ao apressar o passo, respirou profundamente, e se concentrou na meta de concluir o percurso de 4,5 km sem vacilar. Apesar do tempo escasso, ela tinha de aproveitar essa “horinha” benfazeja para renovar as energias. Ainda mais que o céu cinzento deu lugar à uma manhã ensolarada, e os inúmeros compromissos logo teriam de ser cumpridos.

- Que bela manhã! Exclamou, enxugando o suor da testa e fitando o azul do céu...

Foi então que viu numa árvore algo que a encantou de modo significativo. Parecia que ele estava ali como mero observador, ou quem sabe, um refugiado assustado diante daquela gente madrugadora que caminhava sem parar e invadia aquele território, que mais parecia um excepcional reduto de seres alados. Era o famoso “João de Barro”. Intrigada a “Bruxinha” pensou nas inúmeras razões daquele pássaro aparecer justamente naquela árvore existente no parque encravado numa verdadeira “selva de pedra”. Afinal raramente essa espécie forrageia nas árvores, na verdade prefere os galhos baixos e troncos secos para nidificar.

- Ah! Já sei... Só pode ser o crescente desmatamento. A degradação do meio ambiente. A ambição desmedida do homem que não respeita a natureza. Coitadinho. Deve estar temeroso. Não com os seus inimigos naturais, entre os quais o gavião-carijó, o anu-branco e a gambá. Mas, sim, com o bicho homem. Como seria bom vê-lo cantando junto à entrada do seu ninho! Mas, por favor, que não seja em poste elétrico.

Tem razão a “Bruxinha” quando demonstra suas preocupações. Em zona urbana onde está adaptado, o “João de Barro” tem o hábito de usar postes elétricos para nidificação e tem causado inúmeros problemas na rede de eletricidade. Continuando com sua reflexão, acrescentou:

Quantas adversidades esse pássaro enfrenta. Além do pardal que costuma expulsá-lo de seu ninho, ainda tem o azulão que deposita seus ovos no local para que o casal de “João de Barro” crie o filhote alheio. Trabalhador incansável, durante todo o ano passa envolvido em construções de ninhos em forma de forno feitos de barro fresco que depende do regime de chuvas. É realmente um pássaro de grande simbolismo. Serve de referência para o homem. Quando por alguma razão perde um ninho, reconstrói imediatamente outro com a mesma disposição e coragem. E como explicar o modo inteligente com que ele constrói o ninho com a porta de entrada sempre direcionada para o leste para que possa receber os raios solares? Puxa! Que pássaro admirável.

Logo após o término da caminhada, a “Bruxinha” ergueu sua garrafa para beber água e fazer um rápido descanso e criar novo ânimo para enfrentar a etapa seguinte constituída de exercício com bicicleta e alongamento. Foi, então, que teve uma grande surpresa: viu bem diante de seus olhos o “João de Barro” andando de modo esquisito, pausado, e ainda por cima alternando com pequenas corridas... Diante do fato pitoresco e sem conseguir conter o sorriso a “Bruxinha” foi logo dizendo:

- Seu engraçadinho... Quer me demonstrar que também é atleta?

Obs. “Bruxinha” é o apelido carinhoso de uma amiga paulistana.

*Gladston Salles

Detalhes de Um Relaxamento

Relaxou de modo profundo. Enfim conseguiu manter a mente sob controle. E viajou nas asas da águia. Percorreu caminhos até então desconhecidos. Diante de seus olhos, rios, mares, vales e montanhas surgiram de forma fascinante. Tudo era maravilhoso. A visão privilegiada. De repente flores de vários matizes. Campos verdejantes. Árvores frondosas. Rios de águas cristalinas. A natureza exuberante sem degradação. Os homens unidos através dos laços de fraternidade. Nenhum animal em extinção. E passou a voar cada vez mais alto. A sensação de harmonia era indescritível. Atravessou gigantescas nuvens e sentiu vontade de tocar o arco-íris. Mas a águia resolveu descansar e após diminuir de altitude cedeu lugar à gaivota. E o homem de alma serena prosseguiu em sua viagem benfazeja. Logo avistou o mar. Ouviu o marulhar das ondas. Sentiu a brisa suave. E tocou levemente no golfinho. O azul do mar se confundia com o azul do céu. E o homem naquele estado de êxtase e contentamento voltou a ser criança. Viu-se na praia e catou algumas conchas e achou uma estrela do mar. Sorriu como nunca havia feito antes. Brincou e fez castelos na areia. E novamente se viu no espaço conduzido pela gaivota, quando lá do alto contemplou um barco navegando solitário naquela manhã radiante. Foi quando sentiu o desejo de navegar por mais de sete mares e cinco continentes. E assim se tornou o próprio marujo. E passou a conduzir o barco com enorme prazer naquela calmaria. Ao chegar à terra firme, acenou para a gaivota que já voava distante. E a terra era fértil, daí se transformou num lavrador que plantava boas sementes e colhia bons frutos. Não havia ervas daninhas. Nem mesmo pragas. E morava numa casa simples. Nessa condição, vale dizer, que era imensamente feliz e se contentava com o que tinha. Não sabia o que era agrotóxico e poluição. Muito menos desmatamento. Amava e respeitava todos os seres e a mãe natureza. E todos os dias bem cedinho agradecia a Deus por tudo e executava com perfeição a “saudação ao sol”.

OBS. Saudação ao sol (Suryanamaskar – postura do hatha yoga).

*Gladston Salles

Morna Manhã

O velho marinheiro exausto resolve descansar por alguns instantes aproveitando a brisa do mar e a sombra da antiga amendoeira. E se deixa levar pelas lembranças e quimeras. E adormece como quem precisa de um sono profundo e reparador. Ou quem sabe, rejuvenescedor. E tem um sonho daqueles que deixa a gente com vontade de abraçar o arco-íris e esquecer os desenganos, e sorrir e cantar como um menino travesso. O velho marinheiro sonha que é o rei dos mares. O mais valente e audacioso. Capaz de enfrentar as piores tormentas. Em cada porto uma linda mulher ansiosa o aguarda de braços abertos e coração repleto de amor para lhe dar. Ele não tem do que se queixar. É amado e reconhecido como o melhor conquistador dos sete mares. Respeitado e admirado por todos que o seguem. Braços fortes e cheio de energia. Cabelos negros. Olhos verdes como os verdes mares. E não sabe o que é tristeza. É um homem do mar abençoado pelos deuses. E tem histórias verdadeiras para contar. Não precisa apelar por fantasias. Não é um marujo cansado de mar. Pelo contrário ele respira mar. E cada vez mais se encanta com a vida que estava predestinada. E se energiza com o ar marítimo. Nunca amaldiçoa o trabalho duro. Pelo contrário para ele o desafio do mar renova o seu entusiasmo de viver. Céu e mar emoldura sua vida. E isso muito o agrada. Quando se vê diante do mar bravio nunca esmorece. E com coragem invulgar prossegue em sua jornada. Nos momentos de calmaria faz suas orações de agradecimento ao Pai Celestial, antes de usufruir das águas tranquilas. O sono parece não ter fim... E o velho marinheiro através do maravilhoso sonho reencontra a felicidade. Mas o seu barco antigo, simples e remendado, e ancorado próximo dali o aguarda. O marulhar das ondas e a morna manhã, entretanto, parece conspirar a favor do velho marinheiro que não acorda para a dura realidade. Ele vive solitário e depende de favores. Não tem amigos, com exceção do cão fiel que o acompanha sempre. O trabalho é árduo e desgastante. No seu corpo as marcas do tempo e vicissitudes deixam claras o quanto ele precisa de repouso, ou quem sabe um remanso, um acalanto. Mas o tempo passa e ninguém de nobre coração aparece para lhe dizer uma palavra amiga capaz de trazê-lo de volta ao mundo de esperança. Na morna manhã uns vozerios de crianças em busca de conchas na areia, sem querer, despertam o velho, que aturdido volta ao seu mundo real. Acabou-se o sonho... Num instante o rei dos mares cede lugar ao velho marinheiro sofrido, cujas mãos calejadas e enrugadas e sedentas de carinho seguram uma conchinha de rara beleza para oferecer à criançada.

*Gladston Salles